2004/06/02

"FUEGO EN CASABINDO" DE VIRTÚ MARAGANO


Por Lívios Pereyra


Única ópera e última obra do compositor argentino Virtú Maragano, esta imensa e genial obra conta uma das muitas histórias possiveis da tomada das terras aos "aborígenes" por parte dos ocupantes espanhóis.

Abstraindo-nos da mensagem política, há que dizer claramente que será (a ópera foi composta entre 1998 e 2001) uma das grandes obras do repertório operístico: se näo o fôr no futuro imediato sêlo-á um dia.
O final é de uma beleza insuperável, assim como a cena III (morte de Doroteo), onde o talento do compositor é claramente afirmado na conjunçäo de uma orquestracäo belíssima com um despoletar de emoçäo (çöes) que só os grandes conseguem. A consistëncia estilística é formidável com (e apesar...) o compositor a fazer uma incursäo na música "tonal afirmada" (e "ligeira") no início da cena IV (Fiesta de Triunfo). O objectivo foi retratar a futilidade desse momento e a sequëncia da obra deu-lhe razäo. Claro que nos poderiamos lembrar do Wozzeck de Berg em que o único momento em que é utilizada a tonalidade (de forma funcional) é também o momento de maior tensäo. Näo é o caso. Maragno näo só se inspira tonalmente na construçáo de toda a obra (e acaso Berg näo?) como, neste caso particular do festejo da vitória, pretendeu outro efeito e conseguiu-o: a banalidade fugaz de uma vitória que nunca o será.
O momento de maior tensäo é seguramente o final. Todo o final é tragédia, tragédia no "puro sentido", "à maneira dos antigos". Quando a amante (a Cruceña) do mayor López lhe chama louco e ele dispara sobre ela parece algo "normal" dentro da terrificidade deste final. O suicidio do mayor era algo de lógico. Näo poderia deixar de acontecer. Mas este último crime de López pöe-nos de sobreaviso: a violëncia do ocupante é dupla: contra os "indígenas" e contra as mulheres. Estarei a proceder a um "forcing" ao fazer este paralelismo? Possivelmente...
Estou a esquecer a cena em que López vai falar com o bipo... A recomendaçäo/repreençáo deste último näo deixa lugar a dúvidas: deves arrepender-te näo de teres matado o "indígena" que poderias ter feito prisioneiro. Deves arrepender-te, isso sim, de estares vacilante e com dúvidas na tua missäo(de matar para disseminar o catolicismo...). Da morte da mulher näo se vê sombra de arrependimento ou desassossego por parte de López... Estava já numa situaçáo "bordeline"? Sempre o esteve. Deixemos esta "polémica" sem abandonarmos a nossa tese da dupla violência por parte dos ocupantes (e sem nos esquecermos que em Espanha a questäo da violência doméstica contra as mulheres foi, uma vez mais e dada a sua macabra pertinência, colocada na ordem do dia...).
Todo o final é um colosso mas quando o espírito de Doroteo volta ao corpo enquanto a mäe entoa, acompanhada pela a harpa uma impressionante ária: a "Canción de cuna para un niño ciego", aí estamos face à grande catarse desta vez do público que näo resiste e chora. É o final absoluto.

Esta obra maior merece o lugar ao lado de todo o repertório operístico mundial. Trata-se absolutamente de um "chef-d'oeuvre" que colocou Virtú Maragno, falecido este ano, no "ranking" dos clássicos de género operístico. Há mais casos em que uma única obra impöe um compositor no género.

A interpretacäo, totalmente a cargo de argentinos, esteve ao nível da obra. A conduçäo de Carlos Calleja foi precisa e inteligente. Todos os cantores säo bons e muito bons. Detaque, desculpem-me aqueles que näo nomeio, para Luciano Garay (Mayor López) que esteve mediano na estreia mas na récita do domingo seguinte esteve genial. Patricia Gutiérrez muitíssimo bem no de Cruceña. Carlos Duarte, fantástico no de Doroteo (na récita de domingo esteve genialmente emotivo. Antes da récita queixava-se por estar constipado...). A ária de Doroteu, quando regressa para "ajustar contas" é simplesmente assombrosa e foi deslumbrantemente interpretada por Carlos Duarte. Lucila Ramos Meñé sempre uma fabulosa e impressionante Mäe que colheu as maiores ovaçöes do público. A Orquestra e o Coro do Teatro Colón säo muito bons e há que destacar absolutamente o Cöro que, nesta ópera, ao estilo da tragédia clássica serviu de elemento catártico, sempre ausente, sempre presente, sempre genial.
Finalmente há que detacar a interessante encenaçäo de Alejandro Tantanian onde um minimalismo inteligente contribuiu para o elevado nível deste espectáculo.

Fundamentalmente foi uma grande performance, tanto na estreia como no domingo em que voltámos ao Colón, para uma obra que só pode honrar os que nela participaram e os que a escutaram até ao fim... Parece que muitos assim näo o entenderam. Talvez porque näo era cantada em italiano (alguém dizia que soava estranho escutar uma ópera em castelhano!!!)?. Talvez porque esta música näo é parecida ao Verdi a que estäo habituados? Ou talvez porque se sentiram incomodados com a temática? A partir do intervalo (na estreia) estava metade do público e eu inclino-me francamente para o carácter incomodativo, ainda hoje para muitos argentinos, da temática das terras. Foi uma pena. Perderam uma obra genial de um compatriota que só os pode orgulhar. O mesmo, felizmente, näo se passou nas récitas seguintes em que o público se deixou ganhar pela trama e pela genialidade deste "neo-classicismo" de Maragano.